A VALIDADE DA INTUIÇÃO
Escrito por Débora Candido de Azevedo, psicóloga clínica, mestre em educação, em julho de 2007 (A 001)

Vou apresentar a vocês um filósofo, talvez muitos já o conheçam, que de alguma forma pode ajudá-los, com seu método, na difícil tarefa que é, atualmente, a educação.

Edmund Husserl nasceu na Moravia em 1859. Estudou Matemática, Física e Astronomia, além do Novo Testamento em Viena, Leipzig e Berlim. No final do século iniciou-se nas leituras dos filósofos que embasariam seu discurso posterior, como Aristóteles, Hegel e Brentano. E, na virada do século criou a fenomenologia, motivo pelo qual estou hoje aqui para lhes falar.

Husserl não é um filósofo popular porque sua obra é de difícil interpretação, no entanto, seu método fenomenológico impôs-se em variadas esferas do conhecimento: direito, lingüística, sociologia, psicologia e, principalmente, como é o nosso interesse aqui, educação, através dos escritos de Hannah Arendt.

A tarefa que Husserl se colocou era entender como se dá o conhecimento. Por isso julgo que estamos frente a um autor que pode nos ajudar, uma vez que, parte dos problemas cotidianos enfrentados por nós, educadores, refere-se aqueles alunos que, de alguma forma, não conseguem aprender, estamos sempre às voltas com a questão do “por quê não se dá o conhecimento”. Se conseguirmos entender um pouco a essência do fenômeno “apreensão do conhecimento”, quem sabe teremos outros olhos para as dificuldades reveladas no nosso dia-a-dia. Como viram, já estou usando palavras próprias da fenomenologia, como fenômeno e essência. Vou tentar explicar rapidamente qual foi o caminho de Husserl para entender o fenômeno do conhecimento, porque o caminho que ele traçou já é seu método, que pode ser um método de ensino-aprendizagem, pelo menos é o que venho utilizando nesses dez últimos anos.

Podemos começar distinguindo os métodos usados pelas ciências empíricas, positivistas ou naturais, desse novo método que é muito mais adequado para as ciências humanas. Nas ciências empíricas há todo tipo de pressuposições, assim é o seu método, devemos levantar hipóteses elencando todos os “a priori”, para somente depois olharmos na direção do fenômeno a ser estudado. Isso revela a primazia do mundo das idéias, das teorias, do conceito, no lugar de privilegiar o mundo da vida, da experiência, da existência propriamente dita.

Husserl propõe que a apreensão do conhecimento do mundo dá-se na imediatez da inseparabilidade homem-mundo, portanto não é das filosofias ou teorias que deve partir uma investigação, mas das coisas e dos problemas. Indica que o caminho para conhecer é um “retorno às coisas mesmas”, e diz que, muitas vezes, teorias e idéias não são uma ajuda, mas um obstáculo para se chegar ao fenômeno.

O homem apreende o mundo na sua relação com esse mundo. Apreende o mundo que já está aí quando chega e dá uma significação particular para esse mundo, cria sentido para sua existência. Não adianta estudarmos esse homem ou esse mundo, é necessário olhar para cada sentido particularizado de mundo. A realidade ou a verdade absoluta, ou melhor, como diria Husserl, a evidência apodítica, não está de um lado nem de outro, nem no homem como sujeito nem nos objetos mundanos, está no sentido estabelecido por essa relação inexorável homem-mundo. Então, para entender um fenômeno temos que ir a essa relação, nós temos que olhar para a experiência buscando o sentido atribuído ali (à atribuição de sentido para as experiências, chamamos vivência). Não estou falando apenas de observação de fatos da experiência cotidiana, “voltar às coisas mesmas” implica numa atitude, que prescinde do empírico, de preconceitos e pressupostos, do singular e do acidental, para se chegar à essência. A fenomenologia husserliana parte, então, da vivência imediata da consciência.

Para conseguirmos essa atitude fenomenológica, Husserl propõe seu método:

1. Redução ou suspensão fenomenológica – Significa colocar o mundo entre parênteses para isolar o fenômeno a ser estudado (usa termos da matemática). Significa suspender todo juízo, todo preconceito, toda teoria e toda idéia preconcebida a respeito daquele fenômeno que queremos olhar. Significa afastar-se momentaneamente das próprias coisas e ir em direção ao outro que preciso compreender. Nesse movimento não há a primazia do conhecimento que indica o caminho seguro a seguir, há a primazia da experiência, do encontro com o mundo. E nisso está implicada a subjetividade do pesquisador, toda sua capacidade perceptiva, o que nos leva à importância da intuição. Segundo Husserl, o retorno à intuição originária é a fonte do verdadeiro conhecimento, porque parte das coisas e dos problemas, tem um ponto de partida imediato.

2. Descrição (ou mostração) – Significa descrever (oralmente ou por escrito) todos os aspectos do fenômeno em questão, incluindo a percepção do investigador enquanto apreendedor daquele fenômeno. O fenômeno deve ser investigado de vários ângulos, porque fenomenologia é sempre perspectivista.

3. Redução eidética – Significa juntar todas as apreensões daquele fenômeno para compreender então o que há de universal que aparece enquanto essência.

Basicamente, de um modo muito simplista, esses são os três momentos do método fenomenológico. Gostaria de me ater ao primeiro momento porque acho importante resgatar, aqui, algo que talvez tenha ficado esquecido pelo tempo da sociedade pós-moderna, pelo “tecnologismo”, pela racionalidade, a validade da intuição.

No Dicionário de Filosofia temos “intuitio do latim, ato de contemplar, forma de contato direto ou imediato da mente com o real, capaz de captar sua essência de modo evidente. 1. “Por intuição entendo... a concepção firme do espírito puro e atento, que se origina unicamente da luz da razão, e que sendo mais simples é, por conseguinte, mais segura do que a própria dedução” (Descartes). 2. Para Kant, a intuição pura é uma forma a priori da sensibilidade, constituindo com o entendimento as condições de possibilidade do conhecimento.”

Falemos sobre o ato de contemplar, de olhar para o mundo sem todo o lixo mental que nos acompanha, sobre a necessidade de olhar para as coisas, para os nossos alunos e tentarmos compreender como eles realmente são, por eles mesmos, sem as idéias preconcebidas, sem as teorias que nos ensinaram na faculdade. Tentemos um novo caminho, de olhar para cada criança ou adolescente e buscar ali a singularidade existencial ou o modo como cada ser está no mundo, que revela o modo como cada um apreende o mundo ou como cada educando aprende.

“Contemplação, do latim contemplatio: ação de olhar atentamente. 1. Estado de espírito passivo aplicado a uma idéia ou objeto. Para Platão, é atividade do filósofo a visão e contemplação do mundo das essências. 2. Filosoficamente, é o estado de espírito de alguém totalmente absorvido ou extasiado na busca de conhecimento de um objeto inteligente (contemplação da verdade). 3. Atitude de alguém que, cativado por um sentimento estético, revela-se desinteressado e simples espectador, sem preocupações racionais.”

A idéia da passividade adjunta à contemplação fez desse ato algo inadequado ao mundo contemporâneo, onde reina um pragmatismo acelerado em nome do progresso. Assim contemplação passou a ser antônimo de ação, o que nos é exigido constantemente sob forma de pressão.

Chego então a algo fundamental, colocado por Hannah Arendt, a crise da educação como crise da modernidade. Ela coloca que ao derrubarmos as barreiras entre as esferas pública e privada, perdemos a responsabilidade para com o mundo numa crise da autoridade. Ao falar sobre o ofício de pensar, diz que a responsabilidade diante do mundo se estabelece mediante a inexorável correspondência entre pensar, agir e autoria da própria vida.

Como diz Critelli, um dos principais legados de Arendt foi promover a reintegração entre agir e pensar, que aponta para a “perplexidade” como uma possível solução para a crise que se apresenta. Nesse caminho podemos pensar a escola como a “instituição do pensar”.
Como fazer isso?


Referências Bibliográficas:
Husserl, Edmund. “A crise da humanidade européia e a filosofia”. Introd. E trad. Urbano Zilles. 2a. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
Japiassú, H., Marcondes, D. “Dicionário Básico de Filosofia”. 3a. ed. Rev. e ampliada. RJ: Jorge Zahar Ed., 1996.
Revista Educação: “Hannah Arendt pensa a Educação”. Editora Segmento. SP: Spaulo, Vol. 4, 2007.